CRÔNICAS DE UMA GREVE ANUNCIADA
- AURORA MIOTTO BARBOSA
- 30 de jun. de 2018
- 5 min de leitura
Esses dias, saí em busca de uma manteiga de cacau -produto que, afirmo, é uma frescura mais que necessária para o conforto diante das frentes frias de troca de estação- e acabei por ser informada, em três das cinco farmácias visitadas, que a mercadoria se havia esgotado. Isso, como seria previsível, ocorreu devido a paralização dos caminhões e os estoques não contavam com previsão de serem reabastecidos.
Esta informação foi-me transmitida com notória euforia: a greve era novidade, seus impactos eram de fácil análise e seu testemunho, evidente. O tumulto popular que pairava qualquer notícia sobre a greve em sua origem era cabível; além dela ser a mais perfeita denúncia do abuso no preço da gasolina, não era a primeira polêmica envolvendo petróleo no Brasil nos últimos anos. Uma vez que os comerciantes serão os mais diretamente prejudicados com uma paralisação, sua agitação e o desejo de uma pronúncia se faziam completamente sadios. Nessa mesma tarde, após barganhar minha manteiga de cacau, voltei mais cedo pra casa. Esse fato me proporcionou, ao contrário do que se supunha, dois corriqueiros aborrecimentos: o primeiro, foi que o terminal se encontrava lotado - mesmo em plena metade da tarde - devido à gasolina. O segundo, foi que, espremida no meio do ônibus sanfonado, tive a infelicidade de ouvir uma sequência de opiniões - algumas claramente precipitadas - sobre a sequência dos acontecimentos presentes. Algo que me chamou a atenção, foi exclamar de uma senhora, que suportava a greve, e lamentava apenas ter de deixar o carro em casa. Após a última sofrida lástima, ela também acrescentou o descabimento do preço da passagem de ônibus, que apenas agora se dera por conta.
Não tiro-lhe a razão. Em países cujo o preço do combustível é tão elevado como o presente no Brasil, é comum que as passagens de transporte público sejam acessíveis (e que o mesmo seja organizado e bem estruturado). Mesmo em nosso país, a média de passagens coletivas não costuma atingir quatro reais e assim, que absurdo era para aquela senhora ter que gastar suas preciosas economias. Houveram, é claro, protestos em relação ao aumento da passagem. Me pergunto onde estava ela quando ocorreram e se sua presença - tal como a presença de muitos cidadãos que ignoraram esse fato porque, na época, não condizia com seus interesses ou necessidades - teria surtido alguma diferença, e me poupado de presenciar o, muito por mim penalizado, infortúnio da mulher.
A somar com esses acontecimentos, essas noites estava eu rolando o feed do Facebook, quando me deparei com certa matéria, - gritando naquelas chamativas letras grandes e vermelhas que todo o bom portal de notícias (físico ou virtual) utiliza quando precisa urgentemente pregar sua atenção - cujo a fonte pertencia a uma página filiada a MBL; logo em seu título, ela declarava o antipetismo como sendo a causa da greve dos caminhoneiros. Em seguida, na manhã desta segunda-feira, recebi uma ligação do meu pai, na qual ele descreveu um encontro dele com alguns caminhoneiros em greve, no meio de uma estrada que leva ao nosso sítio. De acordo com ele, e dito com grande pesar sobre o mesmo, os caminhoneiros organizavam uma manifestação pedindo a volta da ditadura militar.
A verdade, é que até o presente momento, se eu cheguei a ver três notícias sobre essa tal paralisação que não fossem completamente sensacionalistas, falaciosas ou pretensiosas, foi muito. O que precisamos - e temos falhado, em todos os lados do espectro político - compreender é que a posição grevista adotada pelos caminhoneiros não é um movimento ideologicamente homogêneo: eles não se uniram em favor de uma mesma reclamação política eleitoral, mas de uma demanda justa em comum, uma vez que todos estão sendo prejudicados com as novas medidas adotadas pelo governo (e isso independe de quem determinada parcela atribui a culpa). Essas reivindicações em questão, negociadas pela CNTA (Confederação Nacional dos Transportadores Autônomos), envolvem como principal pauta “a redução dos impostos sobre o diesel para os transportadores”, ou seja, o barateamento da gasolina para empresas e caminhoneiros.
Dia 27/05 o prejuízo gerado pela greve era estimado em 10 bilhões de reais, enquanto a população já sentia diversos prejuízos em suas rotinas. Se em algum protesto houve clamor pela volta da ditadura por parte dos grevistas, só tenho a lamentar a ignorância generalizada, pois o motivo pelo qual essa paralisação conta com o apoio popular, mesmo diante da carência de remédios em farmácias, atrasos em doações de órgãos em hospitais e falta de comida em supermercados, não é, de forma alguma, o anseio do povo pela milícia, acompanhada do toque de recolher e da privação de liberdade de expressão. Oras! Uma greve vai, necessariamente, afetar os mais diversos setores da sociedade. Isso significa que você, como membro social, vai sentir seus efeitos (muito ou pouco, de uma maneira ou de outra). Afinal, se a falta de remédio, comida e transporte não afetasse também as classes média e alta, estaríamos falando apenas de mais uma situação cotidiana para a grande parcela periférica do país, já que para essa parte da população, tais necessidades básicas nunca deixaram de ser isso - necessidades - com ou sem greve.
É importante compreendermos também que “caminhoneiro sozinho não faz verão”. Os caminhoneiros enfrentam condições de trabalho calamitosas há anos: jornadas diárias (suportadas, muitas vezes, à base de remédios) de até trinta e duas horas, condições de trabalho distante de familiares, estradas em péssimas condições, assaltos e acidentes diários; tudo isso seguido de baixa remuneração! A pauta erguida por eles é muito justa e não pouco esperada; é inegável, porém, que toda essa comoção social e midiática não estaria acontecendo apenas com o empenho da CNTA. O grande centro da questão não é o grupo de pessoas que foi provocado - por mais que esse grupo seja o atual foco de notícias -, e sim, o produto.
Nossa sociedade é movida à base de combustível. Você pode analisar isso como uma fragilidade ou como mero modo de organização; uma vez que um setor para, de repente ficamos sem qualquer produto de necessidade básica, à mercê da durabilidade dos estoques. Nós não plantamos, não caçamos, não tecemos, não construímos e não produzimos de maneira individual. Somos, como cidadãos desse meio, completamente dependentes do comércio. E o comércio é completamente dependente do transporte, fato que data desde as caravelas ou, provavelmente, desde antes disso. Independente do juízo de caráter que se possa fazer deste fato, o que está diretamente ligado a economia e a nossa própria capacidade de subsistência são as grandes empresas de transporte que aderiram à greve.
Tem-se notado fenômenos raríssimos no que diz respeito à popularização da causa dos caminhoneiros: a Rede Globo, emissora popular entre os brasileiros, recentemente mudou seu discurso à respeito de “grevistas vagabundos” em detrimento dos protestos que cercam aumento da gasolina. O que faz essa e outras emissoras terem, de repente, apoiado um movimento popular grevista, não é essa causa ser mais nobre do que outras - como as greves gerais contra a reforma trabalhista -, mas sim, o fato de ela contar com o apoio das grandes transportadoras (uma vez que caminhoneiros são pessoas, e podem ser demitidos e re-contratados). No momento, não esqueçamos então que essas grandes transportadoras possuem sindicatos e patrões. Diante disso, é importante exercer um olhar crítico sobre quem vai representar essas demandas numa mesa de negociação, quem decidirá o andamento da greve, de quem e quais interesses serão atendidos e priorizados.

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